De conteúdo instigante e perturbador, mas definitivamente divertido e engraçado, o espetáculo Os Solitários – Histórias do Adeus em Diante foi concebido por Felipe Hirsch com a parceria de Guilherme Weber, a partir de dois textos teatrais Pterodátilos e Homens Gordos de Saia escritos pelo dramaturgo underground americano Nicky Silver. O espectador é confrontado com um espetáculo extremamente rico e complexo, construído a partir de um texto que incorpora um feixe de relações literárias, fílmicas e bíblicas que entram, implícita ou explicitamente, em diálogo e/ou em contestação umas com as outras. Em vez de apresentar uma concepção absoluta da realidade, o autor da produção moderna recria um caleidoscópio de referências e associações que apresentam uma visão fragmentária do mundo ao acentuar a relatividade das coisas e a ambivalência do homem moderno: o jogo dicotômico que exacerba os rótulos sociais, simplistas e excludentes, é esfacelado os parâmetros entre o certo e o errado, o bem e o mal, a realidade e a ilusão, a vida e a morte, a luz e as trevas, a ordem e a desordem tornam-se esfumaçados e são abordados em sua complementaridade dialética. As ressonâncias com o livro do Gênesis no prólogo da peça são visíveis: o ordenamento na criação do mundo e da humanidade é desfeito quando o narrador, ao perceber que esqueceu de trazer as suas anotações, tenta lembrar-se dos acontecimentos da melhor forma possível: entretanto, o que presenciamos é uma narrativa às avessas, imprecisa, repleta de dúvidas, incompatível com os fatos. Instaura-se a perspectiva da bagunça, do deboche, da displicência, da subversão, da memória perdida, da desconexão entre meios e fins, da violação das leis da natureza. Apesar do esforço divino, o homem tornou-se, mesmo com a evolução da espécie, tão primitivo quanto os dinossauros e os macacos que, neste espetáculo, adquirem uma densidade psicológica simbólica. Embora o assunto seja sério, o tema é abordado dentro de uma lógica humorística: numa época marcada pela fragmentação e crise das grandes utopias, o riso adquire uma função redimensionadora, necessário para que o pensamento sério desprenda-se de seus limites. Talvez o cômico, além de ser um agente de distanciamento crítico, seja também o elemento capaz de unir espaços aparentemente sem conexões. Em Os Solitários, a engrenagem de um mundo familiar em decadência é descortinada para os espectadores que vislumbram as deformações psíquicas, frustrações e seqüelas emocionais e afetivas que são decorrentes do complexo relacionamento humano. O público, por um lado, é impactado pelo desnudamento das anomalias familiares, que vão desde as imagens de estupro, incesto e suicídio até as de loucura, assassinato e canibalismo, mas, por outro lado, a tensão é relaxada pelo contrapeso do riso, embora sejam risos intencionalmente desconfortáveis, que têm o gosto amargo da constatação e revelação. Na realidade, o invólucro jocoso e irreverente da comédia encerra, neste espetáculo, verdades essenciais da condição humana: o ciclo da vida e da morte, a relação entre pais e filhos, a distinção entre o masculino e o feminino atingem várias camadas de profundidade da psiquê do homem. Tem-se a impressão que todos os personagens são sobreviventes das tragédias da vida diária. A partir da associação simbólica da reconstrução do dinossauro com a reconstituição da memória de Todd, percebe-se que para Nicky Silver a memória tem raízes muito mais profundas do que a memória embrionária: a memória do indivíduo é dominada de forma absoluta pelo elo familiar que exerce uma influência poderosíssima sobre o indivíduo tal qual os genes que condicionam a transmissão dos caracteres hereditários, ou seja, o indivíduo recebe influências de gerações tão distantes quanto o período da criação do mundo e da humanidade: esta é a herança do que somos. É por este motivo que, tanto para Todd quanto para Bishop, por não conseguirem reencontrar as raízes familiares quando eles retornaram para a casa do pai depois de uma longa ausência, eles não conseguem restabelecer o elo indivisível entre o passado, presente e futuro e, conseqüentemente, restaurar a ordem natural da vida. A maldição familiar prossegue e eles morrem um pouco a cada dia. . Compreende-se, portanto, que o humor negro esteja tão presente na peça, realçando com amargura e crueldade e, por vezes, desespero, os absurdos da vida.
Célia Maria Arns de Miranda - Profa. Depto. Letras Estrangeiras Modernas UFPR.
Um espetáculo de Felipe Hirsch
ELENCO
Marieta Severo, Marco Nanini, Guilherme Weber, Erica Migon e Wagner Moura
FICHA TÉCNICA EQUIPE DE CRIAÇÃO
Tradução e Revisão do texto: Ursula de Almeida Rego Migon e Erica de Almeida Rego Migon Assistente de Criação: Guilherme Weber Cenário: Daniela Thomas Figurino: Cao Albuquerque Direção de Movimento: Deborah Colker Iluminação: Beto Bruel Trilha Sonora: L. A. Ferreira e Rodrigo Barros Homem d'El Rei Fotografia: Flávio Colker Caracterização: Marlene Moura Efeitos Especiais: Artfex Comunicação Visual: Muti Randolph Designer Assistente: Leonardo Eyer Fotografia: Daniel Klajmic e Marcelo Rangel Projeções: Fábio Ghivelder e Batman Zavareze Assessoria de Imprensa: Vanessa Cardoso / Daniela Cavalcanti EQUIPE DE PRODUÇÃO Produção Executiva: Tereza Durante
Direção de Produção: Fernando Libonati
Produtores Associados: Marco Nanini, Marieta Severo e Fernando Libonati Realização:
Pequena Central de Produções Artísticas Ltda